quarta-feira, 8 de julho de 2015

hupokrisicamente

''A própria negação da mentira afirma sua virtualidade como verdade potencial: “Fulano não é ladrão!”significa que não é, mas poderia ser, ter sido ou vir a ser. Fulano e ladrão formam uma só entidade, com desprezo do verbo ser e do advérbio não. Sua justaposição cria outra entidade, ausente de cada uma. Já vimos candidatos em eleições afirmando sua crença de que seus adversários não são ladrões, claro que não: a palavra ladrão dificilmente será descolada da sua vítima. A potência prenuncia o ato, mesmo que ele não se cumpra. Potência é ato em gestação. A mentira é autêntica criação humana. Os animais não mentem: simulam, mas não mentem. A camuflagem do camaleão é reação biológica e não produto da sua possível imaginação.
(...)
Quando alguém reconhecido por suas virtudes, carisma ou feitos espetaculares, artista ou atleta, faz elogia uma mercadoria na mídia – produto que não usa ou sequer conhece –, faz um uso criminoso da empatia. Crime que, no nosso Código Penal, é conhecido como falsidade ideológica. A empatia – instrumento de convencimento e poder – pode ser benéfica quando o personagem com o qual nos deixamos empatizar, tanto no teatro como na vida cotidiana, produz ideias e emoções que ajudam o nosso desenvolvimento intelectual e emotivo. Torna-se daninha quando imobiliza os espectadores inoculando-lhes ideias e emoções ordinárias e falsas, como a luz ofusca cangurus. Essa delegação de poderes que o espectador oferece ao personagem – que passa a agir, sentir e pensar em seu lugar, fazendo-o pensar, agir e sentir como ele – é uma perigosa renúncia à cidadania, porque o espectador, imobilizado, se torna vítima passiva e não parceiro.''

Augusto Boal

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